Os Monumentos na Antiguidade

Livro: O Espiritismo na Sua Expressão Mais Simples e Outros Opúsculos de Kardec

Autor: Allan Kardec

 

(Paris, 31 de março de 1870)

 

Meus amigos,

Quando, poucas horas atrás, o culto da lembrança vos reunia em volta do monumento fúnebre que erigistes para honrar minha memória; quando, rodeado por todos os que me precederam ou seguiram na erraticidade, tendo na fronte o sinal do Espiritismo, eu escutava, audiente invisível e profundamente emocionado, a expressão de vossos sentimentos afetuosos, vi-me transportado, pelo pensamento, a essas épocas pré-históricas, que um de vós evocara momentos antes em páginas eloqüentes e originais; e, vendo passar diante de mim, como num imenso panorama, as grandes figuras dos séculos que se foram, eu me perguntava o que restaria dos primeiros esforços da humanidade-criança, se os fustes das colunas quebradas, se as inscrições quase apagadas das lajes sepulcrais nos permitissem retraçá-los por inteiro!...

Os homens que viveram na Terra foram prosseguir noutra parte os trabalhos começados aqui, mas as idéias que os caracterizaram, os benefícios de que dotaram o espírito humano, como testemunho indestrutível de sua passagem e de seus atos, ficaram profundamente gravados na pedra, esse gigante inconsciente que desafia a ação desagregadora do tempo e dos elementos.

Eu via Zoroastros, Manus e Krishnas desfilarem ante meus olhos deslumbrados. Cada um deles me mostrava, na pedra simbólica e na inscrição peculiar, o traço irrecusável de sua existência e de seus trabalhos.

Envaideciam-se desses testemunhos de reconhecimento de seus contemporâneos? Não! porquanto a individualidade se apaga nesses gloriosos vestígios, para não deixar surgir senão o pensamento de que foi a viva encarnação, para assinalar unicamente a renovação de que foi instrumento e a época em que se realizou. Esses monumentos não são, pois, sinais de orgulho e de vaidade humana, mas a prova material do reconhecimento das gerações passadas para com os que lhes fizeram cair dos olhos alguns dos véus que lhes ocultavam as verdades eternas.

Sim, digo e repito aqui altamente, pois esta é minha convicção: sob a pedra sepulcral há somente um punhado de matéria em decomposição. O Espírito não está mais lá! Prossegue seus trabalhos no espaço, quase não mais se deixando tocar pelas honrarias terrenas, por pouco elevado que seja na hierarquia das inteligências. Contudo, terá o direito de recusar os sensíveis testemunhos de afeição dos homens e esquivar-se à consagração material de sua obra? Não o creio, porque, se é Espírito, também foi homem e, como tal, se pertence à História da Humanidade, se sua passagem determinou alguma inovação importante, alguma revelação profunda nas idéias, sua modéstia, seu amor pela solidão e pela obscuridade apenas ocultarão um orgulho insensato!

Aliás, dentro de alguns anos, quem se lembrará da individualidade laboriosa escondida sob o pseudônimo de Allan Kardec? Quem esquecerá o homem, cujo corpo repousa sob a terra, diante da idéia de que a pedra se acha tão visivelmente marcada?...

Eu vos agradeço, pois, senhores, e vos sou profundamente grato pelo mausoléu que erguestes neste local, porquanto, o que glorificastes, o que eternizastes por sua edificação não foi a memória de Allan Kardec - ela vive em vossos corações e esse testemunho lhe basta - mas a época, para sempre viva nos séculos futuros, que viu erigir em corpo de doutrina os princípios sobre os quais repousam a existência e a legislação natural dos universos.

Mas não éreis os únicos, meus amigos, a recordar o aniversário de minha libertação. Imensa comunhão de pensamentos vos unia aos nossos irmãos em crença, e todos juntos, sob os mais diversos climas, em todas as cidades onde penetrou a idéia regeneradora, dirigíeis ao espaço uma lembrança afetuosa e reconhecida ao humilde instrumento dos desígnios providenciais.

Quão grande era meu coração naquele momento indescritível! Que amor imenso inflamava todo o meu ser, por minha amiga, que deixei sozinha entre vós, por cada um de vós em particular e por todos indistintamente!... Ah! por certo, sensações semelhantes podem fazer se esqueça uma existência inteira de sofrimentos e de lutas!...

Obrigado, meus amigos! Sou feliz, porque meus esforços não foram inúteis; e se alguns grãos da semente que eu estava encarregado de espalhar caíram sobre a pedra ou nos espinheiros do caminho, muitos frutificaram na terra fecunda, pagando-me ao cêntuplo por todos os meus labores!

Prossegui vossa estrada, corajosos pioneiros da idéia espírita; e se por vezes cruéis decepções vos detiverem um momento, se obstáculos surgirem sob vossos passos e entravarem vossa marcha, como entravaram a minha, erguei os olhos e contemplai a grandeza da meta: vossa perseverança e vossa vontade tornar-se-ão inabaláveis!...

Para vós, todos os homens devem ser irmãos, porque têm a mesma origem e estão destinados ao mesmo fim. Se encontrardes cegos, abri-lhes os olhos, restitui a audição aos surdos e, seja qual for a incredulidade de uns e o preconceito de outros, convidai-os sempre e incessantemente ao banquete das inteligências. Quando estiverdes de retorno ao espaço, não vos lembrareis, como eu, senão dos trabalhos realizados e, prosseguindo sempre em vossa marcha ascendente para os mundos superiores, fruireis o espetáculo da felicidade daqueles a quem tiverdes feito partilhar de vossas convicções e de vossas esperanças no futuro.

Allan Kardec

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