Livro: Do País da Luz Vol. 2
Autor: Fernando de Lacerda
(Lisboa, 06 de maio de 1907)
Agora, depois de reconhecido por ti, apraz-me, sinceramente, louvar-te pela tua obra de propaganda e de divulgação.
São volvidos poucos anos após aquele em que tomei sobre mim o pesado encargo de coordenar e publicar os ensinamentos dados pelos Espíritos; e foi necessária não pequena dose de energia e coragem moral para arrostar contra a ignorância de uns, contra a indiferença de outros, e, acima de tudo, contra a maldade daqueles a quem a santidade e pureza da doutrina revelada podia prejudicar. Eles, os meus conselheiros e amigos de então, e agora meus companheiros, não me abandonavam nunca; e ao seu auxílio, autorizadíssimo e potente, eu devi, em grande parte, o ter força e vontade para arrostar com todas as campanhas que se me moveram.
Eu, porém, era nada. Simples instrumento da vontade do Mestre e dos seus obreiros, dei o meu nome e a minha ação material para a grande obra.
Talvez ainda desse menos do que tu.
Eu dava o estudo, a compilação, e tu dás a própria ação.
Tu e eu, porém, como todos aqueles que se dedicam com fé e com amor à grande causa do aperfeiçoamento humano, somos meros trabalhadores da obra imortal. Em nada nos devemos desvanecer, e em nada temos que vangloriarmo-nos de méritos que não possuímos.
Só temos é que dar louvores e agradecimentos a quem, para esta ação meritória nos escolheu, sem pensarmos, entretanto, se somos melhores ou piores do que aqueles que para tanto não foram escolhidos.
Do mesmo madeiro se tira pau para esculturas santas e para formas de calçado; e, por ter diverso destino, não deixou de ter sido alimentado pelas mesmas raízes, criado no mesmo solo e ferido pelo mesmo lenhador. E sucede, por vezes, que a parte a que coube o altar e a adoração, não é a mais sã nem a mais limpa no tronco. Não te envaideças, pois, pela faculdade que possuís.
Extrai dela, sempre que possas, o que de melhor ela possa dar. Não te deixes cegar pela lisonja nem daí nem daqui; assim como te não deixes intimidar com os doestos, as críticas, e, porventura, os insultos com que sejas acolhido. Recorda-te que a vida ai é uma simples transição. Tudo, obedecendo a uma lei comum, transita e passa. O que se demora e fica, ou pelo menos nos dá a impressão da paragem, é a verdade. Ora, a verdade esta na doutrina que servimos, e todo aquele que bem a serve, dela receberá recompensa.
Se te malsinarem, apiada-te de quem o fizer; se responderes, sê sereno, e não olvides nunca que responderás a quem é mais infeliz do que tu, porque ainda lhe não chegou a hora de conhecer a verdade.
És facilmente irritável. Precisas combater tenazmente essa fraqueza da tua vontade.
Quem apostoliza precisa mais de humildade, do que de violência; mais de autoridade do que de cólera. Foi pela humildade que o Mestre conquistou o mundo; foi pela humildade que os seus discípulos consolidaram a doutrina.
Francisco Xavier, só e humilde, conquistou mais almas para o Cristianismo do que todos os cruzados, com os seus aguerridos exércitos e as sua poderosas armadas.
O pobre só se impunha pela simplicidade e pela verdade; os guerreiros pela tirania e pela chacina. Um era o amor e a paz, os outros eram o terror e a desolação; um levava a esperança, os outros o desespero; um levava o alivio às dores, os outros faziam dores para que não havia alívio; por isso o hábito roto e as sandálias humildes do apóstolo ficaram sendo veneradas, e as reluzentes armaduras dos príncipes rapaces e fanáticos, execradas.
Uma idéia, ainda que má, exposta em tranquila prédica, é mais suscetível de converter incrédulos, do que a mais pura idéia, imposta com intolerância.
Perdoa que nós insistamos de vez em quando nestes conselhos. São indispensáveis. Não há ai quem tão limpo esteja dos maus assomos da vaidade e da irritabilidade, que receba sempre, a sangue frio, os golpes vibrados por quem saiba ferir aquelas duas fraquezas espirituais.
Companheiro, é incontroverso que depois que da Terra saí, alguma coisa aprendi mais do que o que nela sabia. Este novo pecúlio de saber seria talvez proveitoso a refundição da minha obra ai.
Tenho refletido muito nisso, por vezes. Sempre que encontro na Terra um médium bom, crio desejos de fazê-lo; e agora; que tenho assistido ao desabrochar das tuas faculdades, mais uma vez pensei, com interesse, na possibilidade de fazer esse trabalho de melhoramento, de aperfeiçoamento.
Penso, porém, ao mesmo tempo, que me devo contentar com o que deixei feito.
Assim como é, tem servido bem para o fim a que a destinaram os Espíritos que a ela presidiram, e os que se me seguirem ai, que busquem, no campo especulativo, o que por mal meu e dela lhe possa faltar ainda.
No campo experimental, ilustres e prestantíssimos sábios se lhe tem avantajado em muito.
A parte experimental é, porém, efêmera. Boa para a conquista, não tem, todavia, qualidades de estabilidade e de conservação. Como fenômeno experimentado, entra na ordem das coisas concretas, e para estas coisas, o aperfeiçoamento é mais sensível, porque a natureza delas é mais precária.
Uma obra experimental de grande atualidade e verdade hoje, daqui a dez anos será velha, se a não acompanhar, como parte integrante e auxiliar, a feição abstrata e ideal.
Os meus livros, no que tem de prático, sob o ponto de vista experimental, estão antiquados e suplantados, de há muito, por dezenas de outras obras de mais incontestado e incontestável valor, daquela ordem de estudos. O que, porém, neles existe da parte moral e de ensinamento, ainda não foi nem será facilmente sobrepujado. E' que, neste campo, eles estão com a verdade, e a verdade, apresentada sob que aspecto for, é sempre a verdade. E' tão nova hoje, como no tempo do Cristo, como no tempo dos profetas, como em qualquer tempo.
Como disse Littré na sua comunicação: sobre filosofia, o homem esta hoje tão adiantado como há milhares de anos.
Ora, a filosofia é a verdade espiritual na Terra.
Sendo assim, para que hei-de mexer na minha obra?
O que tem de bom, há-de ser bom sempre. O que não é bom já está destruído pelo tempo e substituído vantajosamente por todos os trabalhos dos que, com mais valor, me sucederam.
Se, porém, eu reconhecer necessidade e oportunidade para dizer alguma coisa de novo e de útil, o farei; assim como terei sempre grandíssimo prazer em te responder sobre qualquer assunto, ou sobre qualquer detalhe, em que me dês a satisfação de me consultares. Digo-te isto despretensiosamente. Não me ofereço. Conselhos não se oferecem.
Ponho-me à tua disposição, para te utilizares do meu préstimo e da minha experiência, se nisso vires alguma vantagem; mas não me magoarei se me não utilizares.
E que Deus te ilumine sempre a estrada a percorreres.
Allan Kardec